“Água, sabão e bom senso”: um aceno da Medicina Legal
- papo delegista
- 28 de abr.
- 3 min de leitura

Tem uma receita infalível para você manchar a reputação de uma categoria profissional e ela é bem fácil de fazer: misture “falta de noção” com uma carência de ensino sobre ética e responsabilidade profissional do médico. Na velocidade em que um “story” é postado, estará prontinho para ser servido.
Essa vem sendo a realidade de muitos médicos no Brasil, um desafio particularmente agudo para uma geração que cresce com o digital (não me excluo disso), mas que frequentemente não sabe lidar com o básico (me excluo disso), sobre boas práticas no uso das redes sociais. Ser médico exige uma conduta ética e moral 24 horas por dia e 7 dias por semana, lamento informar aos aspirantes que acham que basta um registro no Conselho Regional e começar a postar uma vida fantasiosa nas redes para atrair seguidores. Vai acabar fazendo a receita catastrófica que disse acima.
Não basta ser ético, tem que parecer ético. A única fórmula para isso é você colega ou futuro colega, entender que não dá para seguir certas sugestões focadas exclusivamente em gerar engajamento, ignorando as particularidades éticas da nossa profissão. Te explico porque.
Se nem os médicos estão sendo preparados eticamente na graduação para isso, seria talvez... otimista demais esperar que a iniciativa de zelar pela ética médica partisse justamente de quem não vive essa realidade diariamente? Se você acha “chato” estudar o Código de Ética Médica, imagine a empolgação alheia com o tema. Para os especialistas em comunicação, o objetivo primordial, compreensivelmente, costuma ser o engajamento. E ele custa caro, literalmente. Experimente fazer um orçamento para “gerir” suas redes e você saberá bem o que estou falando. Sem contar as consequências de uma postagem inadequada nas redes.
Essa busca incessante por visibilidade, muitas vezes desprovida de reflexão ética, nos leva a um princípio fundamental. Na Faculdade de Ciências Médicas de Santos, uma sábia professora costumava dizer que “água, sabão e bom senso podem salvar o mundo”. Um tópico de Ética elucidado em uma frase simples e infalivelmente correta.
Se tiver bom senso, já é meio caminho andado, mas claramente não estamos observando isso. Para além de questões geracionais graves de carência de sensibilidade para com o próximo e sobre consequências dos próprios atos, é notável o problema da negligência sistemática do ensino da Medicina Legal. Sim, ela mesma, pois é inerente a esta especialidade a análise das condutas médicas e suas consequências, a interface com a justiça e a sociedade, e a discussão sobre erro médico e responsabilidade – elementos cruciais para formar a consciência ética e profissional. Cabe invariavelmente à essa disciplina ensinar sobre ética e responsabilidade profissional. De médico para médico, com base filosófica, teórica e prática do porque isso é importante.
Para ser médico não basta saber prevenir, diagnosticar e tratar. Isso é pouco e não é uma frase de efeito de um especialista em comunicação para te vender a importância do engajamento nas redes sociais. É sobre compreender e ter ao longo dos 6 anos de graduação um ensino continuado sobre esses temas da nossa querida Medicina Forense, justamente por sua capacidade única de conectar a prática clínica às suas implicações éticas, legais e sociais.
Mas a quem interessa isso, você pode se questionar. Afinal, vivemos em um país onde o próprio judiciário desconhece a perícia médica (que foi feita justamente para “servi-la”), também porque não é disciplina obrigatória na sua graduação (pasmem); onde os colegas médicos têm, quando muito, meia dúzia de aulas mostrando casos da Medicina Legal Criminal e acham que isso resume toda a especialidade (muitas vezes inclusive quem está lecionando); uma matriz curricular que desconhece a relevância desta especialidade para ensinar todos estes temas e claro, entidades representativas que também desconhecem e/ou não estão devidamente engajadas - com o perdão do trocadilho - em fortalecer um movimento que mude essa triste realidade.
Não fugindo à nossa pergunta retórica: interessa a todos. À sociedade e a toda comunidade médica, que só veem a importância do ensino da Medicina Legal quando passam por apuros na carreira, observam manchetes sobre bizarrices que médicos ou estudantes de medicina postam nas redes sociais e, claro, também para supostamente remediar frustrações com a profissão te vendendo ilusões milionárias.
O resultado é um só: um show de horrores nos noticiários, na internet e no judiciário. Nos resta a esperança de que essas condutas inadequadas que observamos periodicamente sirvam de alerta e tornem claro os pontos que trouxe acima e muitos outros. Mas é preciso cautela e vigilância por parte dos Conselhos e entidades representativas dos médicos, ação conjunta, pois nunca se sabe qual coelho sai da cartola do legislativo para acenar à população tomando uma “atitude” eleitoreira. É preciso bom senso (olha ele aí de novo), afinal quem poderia imaginar?
Yuri Franco Trunckle, MD
Especialista em Medicina Legal e Perícias Médicas
CRM/SP 190784 RQE 91470
Comments